Na última semana a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) anunciou o bloqueio de aparelhos TV Box não homologados. O anúncio repercutiu bastante e levantou diversas questões acerca de aspectos legais e culturais legais.
O suposto objetivo da ação é desestimular o uso do aparelho e, consequentemente, reduzir a quantidade de usuários de IPTV. Durante a coletiva de imprensa convocada pela ANATEL o presidente da agência, Carlos Manuel Baigorri, deu diversas declarações fantasiosas e exageradas para “comprovar” o risco oferecido pela “caixinha”.
Os testes realizados pela agência, aconteceram com a participação de técnicos da Associação brasileira de TV por assinatura (ABTA), e foram capazes de comprovar vulnerabilidades presentes em qualquer sistema informatizado, seja homologado ou não, como a possibilidade de um malware ser instalado e realizar ações não autorizadas.
Nada diferente do que qualquer usuário de Windows pode enfrentar, mesmo sem a instalação de softwares externos como é o caso do Windows 11 que vem sendo comparado a “spyware” devido a grande quantidade de dados do usuário enviado para servidores de terceiros. Ou, ainda, de forma mais grave como quando o Portal Cidadão.SP do Governo de São Paulo utilizava o computador dos usuários para minerar criptomoeda. Outro ponto apontado como risco é o acesso em modo administrativo pelo sistema operacional da TV Box, que é basicamente o acesso root no Android da mesma forma que milhões de smartphones em todo o Brasil.
Convém esclarecer para aqueles que não possuem familiaridade com IPTV, que o acesso não se dá apenas via TV Box. A transmissão pode ser acessada diretamente em aplicativos nativos da TV Smart, de aplicativos próprios dos servidores para android e iOS e até mesmo diretamente do navegador em notebooks e desktops. Logo, a medida é completamente ineficaz.
Como bem lembrado durante a sessão de perguntas pelo jornalista Luís Osvaldo Grossmann, do Convergência Digital, a ação confronta com o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) ao determinar o bloqueio de IPs sem determinação judicial uma vez que a única possibilidade para isto seria com envolvimento de conteúdo sexual.
Após explicitar que a estratégia da agência se baseia em tentar inutilizar os equipamentos para que o cidadão jogue fora e não compre novos aparelhos do segmento, o presidente da ANATEL deixou claro o objetivo: constranger.
“Isso é um grande desafio, principalmente quando a gente pensa em eventos ao vivo. Você chama seus familiares, seus ‘brothers’ para ver um jogo de futebol que você tem a caixinha e vai ver o payperview, chega lá e não funciona. É aquele constrangimento… É esse tipo de constrangimento que a gente quer criar no consumidor para que ele perceba que não é um bom negócio comprar este tipo de equipamento, que é pirata e traz um risco pra ele e para sua família”, declarou Carlos Manuel.
É importante ressaltar que o constrangimento mirado pela ANATEL não é um simples aborrecimento. Constrangimento que nunca houve em uma relação promíscua da agência com operadoras, já relatado em diversas ocasiões chegando ao ponto da OAB pedir afastamento de presidente, e sempre se posicionando de forma contrária aos usuários como uma agência reguladora não deveria agir.
Esta grande energia desprendida pela Agência Nacional de Telecomunicações para cercear o pouco acesso à cultura que o brasileiro possui, utilizando argumentações falaciosas e fantasiosas, não é visto quando grandes empresas infringem a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ou o Marco Civil da Internet.
A ação nada mais é que uma medida desesperada da ANATEL para satisfazer o lobby da Associação Brasileira das TVs por Assinatura (ABTA), a mesma associação que historicamente faz anúncios surrealistas contra a pirataria ao mesmo tempo em que cobram valores absurdos em seus produtos com baixa qualidade.
Em um momento que a maior parte da população se encontra em insegurança alimentar, querer exigir que o brasileiro pague centenas de reais para ter o mínimo de acesso à cultura ou simplesmente uma distração chega a ser criminoso principalmente quando se analisa as alternativas legais.
Fizemos a busca nas principais operadoras do mercado apenas para estudo do caso.
Na Sky, no pacote “Básico” de R$61,90 o usuário tem acesso apenas a canais abertos e de publicidade. Se o usuário quiser assistir canais realmente básicos da tv fechada, como Multishow ou Discovery Channel precisa assinar o pacote “Super” com valor a partir de R$99,90 em um pacote com apenas um único canal de esporte (Sportv 2) e um único canal de notícias (GloboNews) e para ter acesso a canais como Comedy Central ou Home & Health é obrigado a assinar os pacotes “Top” com valor a partir de R$109,90.
Já na NetClaro, o usuário é indicado o tempo todo para assinar o combo com internet e não foi possível encontrar de forma intuitiva quais são os canais oferecidos nos planos. A Vivo oferta dois planos, sendo o mais básico por R$164,90 com 80 canais e o “completo” por R$289,99.
Além disso, a apresentação dos pacotes induz o assinante ao erro, com números inflados contabilizando o canal em SD e HD como canais diferentes e que alguns conteúdos como Premiere, Telecine entre outros precisam ser assinados com valor extra.
Dessa forma, além da venda casada dos canais, o usuário que assinar passará o dia assistindo propagandas e reprises do mesmo conteúdo na maioria dos canais.
Assim, o usuário constrangido que apenas queria assistir um jogo de futebol, como exemplificado pelo presidente da ANATEL precisaria desembolsar, algumas centenas de reais, principalmente se tiver interesse em conteúdo VOD (sigla, em inglês, para vídeo sob demanda) como Netflix, Amazon Prime, HBO Max, Globoplay, Disney+ e Paramount+ que somariam mais uma boa parcela na fatura.
Um valor total de grande impacto no orçamento do brasileiro que não vive a realidade de um presidente de agência reguladora, cujo salário bruto mensal é maior do que a renda média anual da população, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD).