Reflexão do Instituto Aaron Swartz sobre a PL 2630
A Internet é uma tecnologia de comunicação que alcança quase 5 bilhões de pessoas no mundo, e o Brasil é atualmente o quinto país com mais usuários da rede e o segundo que passa mais tempo utilizando plataformas digitais. No entanto, nenhuma das empresas prestadoras de serviços é nacional, ou seja, pessoas e legislações estrangeiras são responsáveis por quase todos mecanismos de funcionamento dos espaços que utilizamos com tanta frequência. Os aplicativos de troca de mensagens e as redes sociais estiveram em destaque nos últimos anos devido ao seu intenso uso político na manipulação da população através da disseminação de Fake News. Portanto, é importante participar da discussão sobre o Projeto de Lei 2.630/2020, que pretende alterar a regulação das plataformas digitais.
O PL 2.630/2020 cria o “Dever de Cuidado”, afirmando que as próprias empresas devem vigiar e remover conteúdos. Mecanismos de regulação de qualquer tipo de serviço exigem a criação de entidades fiscalizadoras que verificam o cumprimento das regras. De forma geral, confiamos que as pessoas que nos servem refeições em restaurantes estão comprometidas com o nosso bem estar, mas sem a existência da Vigilância Sanitária, órgão do Sistema Único de Saúde, os frequentes abusos seriam generalizados e impunes. É por isso que o Instituto Aaron Swartz se preocupa quando a legislação parte do princípio de que as plataformas devem se auto-regular. Como os interesses das empresas não são os mesmos interesses do consumidor, a busca pelo lucro levará a empresa a exercer seu poder regulatório preventivamente sobre usuários comuns enquanto será negligente com anunciantes, como já acontece.
Não há antecedentes que nos levem a acreditar que as plataformas possuem capacidade ou interesse de julgar de forma justa suas redes. Uma lei que solicite esse comportamento das empresas é uma garantia da violação do direito de liberdade de expressão do usuário comum. As plataformas que já possuem o poder econômico e estrutural, passariam a ter o poder e o dever de julgar a fala, hoje função da justiça. Isso inverteria a lógica criada pelo Marco Civil da Internet, que autorizou a moderação de conteúdo sem imunizar as plataformas de responsabilidades civis, vinculando a remoção de conteúdo às ordens judiciais e protegendo direitos fundamentais.
O Projeto de Lei admite a criação de uma entidade de autorregulação, “formada pelas plataformas enquadradas” na Lei (Art. 37), assim como uma “auditoria externa” (Art. 31), que seria realizada por uma empresa que avaliaria. Essas medidas privatizam a fiscalização do respeito à lei, distraindo o público da necessidade de um órgão regulador independente. Um ambiente online saudável, assim como no caso da saúde pública, necessita de um órgão fiscalizador autônomo em suas dimensões funcional, financeira e administrativa. O texto atual do Projeto de Lei deixa como uma “possibilidade” a criação de um órgão fiscalizador, sendo possível interpretar que talvez essa função seja assumida por outra entidade, mas atualmente não existe nenhum órgão com essa tarefa, experiência, capacidade ou estrutura para assumir essas atribuições.
O texto prevê que suas regras só serão aplicáveis às plataformas de 10 milhões ou mais usuários no país. Acreditamos que essa é uma limitação arbitrária que busca diminuir o peso burocrático da aplicação da legislação, pois não existe um mecanismo padronizado de declaração e autenticação das plataformas digitais que registre o número de usuários no Brasil. É importante ter critérios mais flexíveis que pensem no impacto local dessas tecnologias, uma vez que existe enorme facilidade na criação de novas redes de utilização dedicada que sejam igualmente prejudiciais ao público.
Não existem no texto regras que proíbam as plataformas de implementar reduções da segurança de seus sistemas. É preocupante que na redação do art. 12, que o dever de cuidado possa exigir a análise dos conteúdos de comunicações privadas de usuários. Para atender demandas desse tipo em grande volume seria necessário a não aplicação de criptografia dos dados, arriscando a segurança e privacidade de todos os usuários. Já o artigo 36 estabelece a “guarda, pelo prazo de um ano a partir da remoção ou desativação, de dados e informações que possam constituir material probatório”. Uma definição ampla que incentiva o amplo armazenamento de dados pessoais, incluindo dados de terceiros não envolvidos com a conduta que motivou a intervenção pela plataforma. Por fim, o artigo 57 muda o Marco Civil da Internet ampliando os poderes de requisição cautelar das autoridades das informações de identificação dos usuários para provedores de aplicação ou conexão. As regras carregam graves riscos de abusos pelas autoridades, além de ampliar o risco de incidentes de segurança que podem ocasionar danos significativos aos titulares, incluindo roubo de identidade, fraude financeira, discriminação e danos reputacionais.
A remuneração do jornalismo abordada pelo artigo 54, expande sua abrangência para cobrir quaisquer bens protegidos pelo direito de autor. Este tema não deveria ser tratado por um único artigo. O tema merece debate aprofundado e norma própria. A proposta deixa sem explicação tanto a reformulação de dispositivos-chave na lei de direito autoral quanto a estruturação das associações de gestão coletiva. O §3o do artigo 54 explicita que os donos dos conteúdos protegidos devem exercer seus direitos por meio de associações de gestão coletiva, as quais negociarão com as plataformas os valores, modelo e prazo da remuneração. O modelo atual foi atingido após décadas de discussão e debates.Uma mudança tão radical não deve se dar através de um único parágrafo de um artigo sem ampla participação social. A proposta não esclarece de quem é a competência pela arrecadação e obriga os criadores de conteúdo a se associarem a essas entidades, que possuem graves falhas, caso eles queiram ser remunerados. A lei australiana que permite esse tipo de negociação é o modelo de regulação da matéria para o Brasil, e sofre críticas por enriquecer conglomerados de mídia. Este debate não pode ser inserido no PL 2630/20 em sua reta final de tramitação, isso prejudicaria o combate à desinformação e o acesso à cultura no Brasil.
O Instituto Aaron Swartz acredita na igualdade de todos perante a lei, que será violada pelo PL 2630/20 ao conferir imunidade parlamentar através de categorias de usuários privilegiados para políticos, que são tratados como “superiores”, ainda que descumpram os termos de uso e a regulação. O texto propõe que contas institucionais de entidades e órgãos da Administração Pública, assim como contas de cidadãos eleitos para cargos no Executivo e no Legislativo federais e estaduais recebam uma proteção. As plataformas não podem suspender ou bloquear os perfis, salvo se por mandado judicial ou por 7 dias em casos de violações recorrentes. A divulgação de discurso de ódio e desinformação, é muitas vezes feita por agentes do poder público, sendo absurdo argumentar que tais contas estariam protegidas por interesse público quando divulgam tais tipos de conteúdo.
Um dos poucos pontos positivos do Projeto de Lei está nos artigos 20 a 28, que exigem a divulgação de relatórios semestrais com dados sobre algoritmos de recomendação, medidas tomadas para eliminar atividades criminosas, assim como um repositório de publicidade para usuários. Além disso, o artigo 29 aborda a obrigação das plataformas viabilizarem acesso gratuito a dados desagregados sobre seu funcionamento para fins de pesquisa acadêmica, fundamental para promover a realização de estudos sobre suas métricas, a circulação do discurso e impactos à liberdade de expressão.
O Instituto Aaron Swartz é parte da Coalizão Direitos na Rede (CDR), que reúne mais de 50 organizações acadêmicas e da sociedade civil em defesa dos direitos digitais, tendo como temas principais de atuação a questão do acesso à Internet e a proteção dos direitos à liberdade de expressão, proteção de dados pessoais e privacidade na rede. Convidamos todos para participar deste debate que merece a urgente atenção de todos os setores da sociedade brasileira. Estamos observando a importação de modelos legais europeus sem adequação à realidade brasileira que já possui o Marco Civil da Internet. A adoção de modelos estrangeiros não pode ser feita às custas dos direitos dos usuários da Internet no Brasil.